O texto “Lei de Cotas em Debate” é uma transcrição das páginas 11 a 14 da cartilha “Empregabilidade para a Pessoa com Deficiência”, publicada em 2010 (23p.) por ocasião da 1ª Feira Muito Especial de Tecnologia Assistiva e Inclusão Social das Pessoas com Deficiência da Paraíba, pelo Instituto Muito Especial, ou seja, 19 anos após a aprovação do art. 93 (artigo conhecido como Lei de Cotas) da Lei nº 8.213, de 24/7/1991. Hoje, 2020 – 10 anos depois da citada cartilha -, eu resgato aquele debate e acrescento meus comentários a fim de refletir sobre a evolução da prática do cumprimento e do descumprimento da Lei de Cotas. Faço isto contextualizando tal evolução em alinhamento com os diversos ordenamentos jurídicos publicados ao longo do tempo.

Este texto será aberto ao público como exemplo do tipo de documento que pretendo disponibilizar aos apoiadores.

Muito obrigado!


Título: Lei de Cotas em Debate.

Publicado originalmente nas páginas 11 a 14 da cartilha “Empregabilidade para a Pessoa com Deficiência”, publicada em 2010 (23p.) por ocasião da 1ª Feira Muito Especial de Tecnologia Assistiva e Inclusão Social das Pessoas com Deficiência da Paraíba, pelo Instituto Muito Especial.

Prefácio

         Nestas páginas que se seguem, faço uma narrativa de um dos muitos momentos árduos da luta pelo cumprimento da Lei de Cotas, vividos há 10 anos. Mas, antes de 2010, a luta já havia sido iniciada embora timidamente nos primeiros anos após a publicação da Lei nº 8.213/1991, quando todo o mundo especializado em colocação laboral de pessoas com deficiência sequer soube do art. 93 (a Lei de Cotas) deste ordenamento jurídico. Somente 8 anos após esta Lei, foi publicado o Decreto nº 3.048, de 6/5/1999, cujo art. 141 reafirma os mesmos percentuais de contratação de pessoas com deficiência, já inseridos na Lei nº 8.213/1991 e que as empresas com 100 ou mais empregados deveriam cumprir contratando trabalhadores reabilitados e pessoas com deficiência habilitadas.

         Em 2004, quando a Lei de Cotas completava 13 anos de existência, o Espaço da Cidadania publicou, após estudos estatísticos, que “do total de 15,22 milhões de pessoas com deficiência em idade de trabalhar, apenas 3,9% teriam emprego garantido se a Lei de Cotas fosse plenamente cumprida no Brasil” (CLEMENTE, Carlos Aparício & CELESTINI, Erika Charkani, orgs. Trabalhando com a diferença. Osasco: Espaço da Cidadania, 2004).

         Aquela estimativa deve ter acordado muitos profissionais de reabilitação profissional, ativistas de direitos das pessoas com deficiência e outros interessados, que não tinham imaginado que poderia acontecer percentual tão absurdo. Daí a necessidade de criar outros meios legais para aumentar aquele percentual de 3,9% (cumprimento pleno das cotas) para um percentual mais próximo possível de 100% (cumprimento pleno de contratações espontâneas), em apoio à continuação da luta pelo cumprimento da Lei de Cotas.

         E, de fato, nos últimos 16 anos (2004-2020), melhoramos cada vez mais a nossa estratégia legal para possibilitar às empresas mais refratárias o cumprimento da Lei de Cotas de um modo mais compreensivo e mais consciente das vantagens da contratação de pessoas com deficiência, tanto para estas pessoas quanto para as próprias empresas.   . 

– Romeu Sassaki, 16 de julho de 2020.


Lei de Cotas em Debate

por Romeu Kazumi Sassaki

         As práticas discriminatórias contra pessoas com deficiência sempre fizeram parte da história de todos os povos. E a discriminação, calcada em preconceitos, estigmas, estereótipos e desinformação, tem atingido essas pessoas, quaisquer que sejam o seu gênero e sexo, sua etnia, área de atividade (lúdica, escolar, econômica, recreativa) e faixa etária.

         Para combater a discriminação no contexto específico do mundo do trabalho, pessoas com deficiência e seus aliados têm, desde 1960, lançado mão de diversos recursos ou medidas a que damos o nome genérico de “políticas de ação afirmativa” ou simplesmente “ações afirmativas” ou “ações positivas”.

         São conhecidas as medidas de ação afirmativa mais praticadas no mundo: sistema de cotas, funções designadas ou reservadas, empregos protegidos, empregos reformulados, empréstimos para pequenas empresas e cooperativas, direitos de produção exclusiva, incentivos fiscais, esquemas de geração de renda, negócios por conta própria, apoios especiais, oficinas protegidas de trabalho, contratação prioritária, reconceituação de exames médicos, adaptação de máquinas e equipamentos, adaptação de locais de trabalho, busca de candidatos qualificados, reconceituação de deficiência, adaptação de funções, flexibilização de horários e processos de produção etc. Todas elas não surgiram de uma só vez e, sim, isoladamente, de acordo com os valores de cada época.

         E todas estas medidas tinham como justificativa o objetivo de incentivar a contratação de pessoas com deficiência, corrigindo desvantagens e desigualdades no mercado de trabalho, na tentativa de assim eliminar barreiras impostas pela discriminação baseada na deficiência. Entenda-se que, assim, uma nação estaria pagando sua dívida social para quem ficou desempregado, tem sido dado, equivocadamente, o nome de ‘equiparação de oportunidades’ a todas as medidas especiais, mesmo quando nem todas elas se encaixem no referido conceito.

Histórico

         O sistema de cotas é uma das medidas mais antigas; é do tempo em que a visão da sociedade  sobre as pessoas com deficiência e a visão destas sobre si mesmas e sobre a sociedade eram carregadas de paternalismo, assistencialismo, motivação caritativa, comiseração, noção de capacidade laborativa reduzida e noção de cidadania de segunda categoria. Esta visão, hoje superada ou ainda em vias de superação, explica a revogação do sistema de cotas em países como: Estados Unidos (em 1990), Canadá (em 1994), Grã-Bretanha (em 1995), Nova Zelândia, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Austrália e Portugal (BRASIL, 2007, p. 12-14; SASSAKI, 2006, p. 84-92).

Origens

          No Brasil, a reserva de postos de trabalho nos setores público e privado para pessoas com deficiência e a respectiva porcentagem de vagas reservadas estão previstas em uma série de dispositivos legais. O mais antigo deles foi a Lei nº 3.807, de 26/8/1960, que, em seu art. 55 e parágrafo único, assim determinou [com grifos meus]:

“Art. 55. As empresas que dispuserem de 20 (vinte) ou mais empregados serão obrigadas a reservar de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) de cargos, para atender aos casos de readaptados ou reeducados profissionalmente, na forma que o regulamento desta lei estabelecer. Parágrafo único. O Instituto Nacional de Previdência Social emitirá certificado individual definindo as profissões que poderão ser exercidas pelo segurado reabilitado profissionalmente, o que não o impedirá de exercer outras para as quais se julgue capacitado.” [Redação dada pela Lei nº 5.890, de 8/6/1973]

         No mesmo ano de 1960, foi aprovado o Decreto nº 48.959-A, de 19/9/1960, cuja redação foi modificada pelo Decreto nº 60.501, de 14/3/1967. O Decreto nº 48.959-A/1960, em seu art. 172 e § 1º, assim determinou [com grifos meus]:

“Art. 172. As empresas vinculadas à previdência social, que dispuserem de 20 (vinte) ou mais empregados a seu serviço, são obrigadas a reservar de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos cargos para atender aos casos de beneficiários reabilitados na seguinte proporção, desprezadas as frações de décimos e com o mínimo de 1 (um): I – até 200 empregados… 2%. II – de 201 a 500… 3%. III – de 501 a 1.000… 4%. IV – de 1.001 em diante… 5%. § 1º. O setor de arrecadação dos órgãos locais enviará ao Centro de Reabilitação Profissional a relação das empresas contribuintes com indicação da respectiva atividade e o número de empregados, mantendo-a permanentemente atualizada.”

         Seis anos depois, surgiu o Decreto nº 60.501, de 14/3/1967, que, em seu art. 128 e §1º, assim determinou [com grifos meus]:

         “Art. 128. As empresas, vinculadas à previdência social, com 20 (vinte) ou mais empregados, são obrigadas a reservar de 2% a 5% (dois a cinco por cento) dos cargos para atender aos casos de beneficiários reabilitados, na seguinte proporção, desprezadas as frações e com o mínimo de 1 (um): I – até 200 empregados… 2%; II – de 201 a 500… 3%; III – de 501 a 1.000… 4%; IV – de 1.001 em diante… 5%. § 1º. Os setores locais de reabilitação organizarão cadastros das empresas, com indicação da natureza das diversas atividades necessárias aos seus serviços, com elementos obtidos, se necessário, através do setor de fiscalização.”

[Nota: O Decreto nº 60.501/1967 foi revogado pelo Decreto nº 72.771, de 6 de setembro de 1973, que, por sua vez, foi revogado pelo Decreto nº 3.048, de 3/5/1999.]

         Em 1991, foi aprovada a Lei nº 8.213, de 24/7/1991, que, em seu art. 93 e §1º e §2º, assim determinou [com grifos meus]:

“Art. 93. A empresa com cem ou mais empregados está obrigada a preencher de dois por cento a cinco por cento dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de [com] deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados… 2%. II – de 201 a 500… 3%. III – de 501 e 1.000… 4%. IV – de 1.001 em diante… 5%.  §1º. A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado [pessoa com deficiência habilitada] ao final de contrato por prazo determinado de mais de noventa dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. §2º . O Ministério do Trabalho e da Previdência Social deverá gerar estatísticas sobre o total de empregados e as vagas preenchidas por reabilitados e deficientes habilitados [pessoas com deficiência habilitadas], fornecendo-as, quando solicitadas, aos sindicatos ou entidades representativas dos empregados.”

[Nota: O art. 93 foi logo apelidado de “Lei de Cotas”, como se fosse a primeira do Brasil]

         Todos os dispositivos referentes às cotas de contratação de pessoas com deficiência, aprovados após 1988, fundamentam-se na Constituição da República Federativa do Brasil (CF), de 5/10/1988, e/ou na Lei nº 7.853, de 24/10/1989. Mas tanto a CF como a citada Lei não especificam percentuais.

         A CF diz no art. 37, inciso VIII: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de [com] deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

         E a Lei nº 7.853/1989, em seu art. 2º, inciso III, assim determinou [com grifos meus]:

(b). o empenho do poder público quanto ao surgimento e à manutenção de empregos, inclusive de tempo parcial, destinados às pessoas portadoras de [com] deficiência que não tenham acesso aos empregos  comuns;

(c). a promoção de ações eficazes que propiciem a inserção, nos setores público e privado, de pessoas portadoras de [com] deficiência.

(d). a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho, em favor das pessoas portadoras de [com] deficiência, nas entidades da Administração Pública e do setor privado, e que regulamente a organização de oficinas e congêneres integradas ao mercado de trabalho, e a situação, nelas, das pessoas portadoras de [com] deficiência.”

Outros países

         Hoje, como no Brasil, muitas pessoas com ou sem deficiência estão divididas entre aquelas que defendem o sistema de cotas e aquelas que o rejeitam. O relatório da Conferência Internacional sobre Vida Independente, realizada em Washington-DC em 1999 e da qual participaram delegados brasileiros, fez o seguinte registro sobre o sistema de cotas: “Os sistemas de cotas têm sido há muito tempo um elemento das políticas de emprego em certos países da Europa, Ásia e, em menor grau, da África, variando desde aquele que requer apenas uma pequena porcentagem de funcionários de governo (por exemplo, 2%) até sistemas sofisticados que cobrem forças de trabalho públicas e particulares e exigem vários níveis de multa em caso de descumprimento. Embora eles variem bastante quanto ao cumprimento, monitoramento e cobertura, nenhum sistema de cotas é considerado bem sucedido em atingir o seu objetivo original: aumentar os níveis de contratação de pessoas com deficiência. Foi observado com ironia que, em alguns países, o fluxo de dinheiro do sistema de cotas poderia ser rastreado a partir das multas pelo descumprimento, pagas por empresas particulares, dinheiro esse que então percorre o sistema e termina chegando às portas das oficinas protegidas de trabalho, ou seja, o mercado aberto subsidiando a força de trabalho segregado e mal remunerado. Ficou claro, após os debates, que nenhum país estava pretendendo adotar o sistema de cotas e que, ao mesmo tempo, alguns países que já adotaram este sistema estão agora elaborando uma legislação antidiscriminatória baseada em direitos para enfrentar a questão do emprego e das medidas de acessibilidade.” (SASSAKI, Romeu. Vida independente, história, movimento, liderança, conceito, filosofia e fundamento, reabilitação, emprego e terminologia. São Paulo: Revista Reação, 2003, p. 18-20).

Sobre o autor

Romeu Kazumi Sassaki é consultor e autor de livros de inclusão social. Ex-Presidente da Associação Nacional do Emprego Apoiado (Anea), nas gestões 2014-2016 e 2016-2018.

E-mail: romeusassaki@gmail.com

Licença de Uso

Esta versão do documento foi publicada em 16/07/2020 como parte do projeto de financiamento coletivo Romeu Sassaki – Sociedade Inclusiva (apoia.se/romeusassaki) exclusivamente para uso dos apoiadores para arquivo pessoal.  A replicação e distribuição deste documento deve ser autorizada pelo autor.

Arquivo: Sassaki Romeu – 2010 – Lei de Cotas em Debate  – 20200716-2


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