Os conceitos ‘capacitismo’, ‘incapacitismo’ e ‘deficientismo’, respectivamente do inglês ‘ableism’ (ou ‘ablism’), ‘handicapism’ e ‘disablism’, surgiram muito tempo atrás.

Foi no tempo em que a sociedade designava as pessoas com deficiência como ‘os inválidos’, ‘os incapacitados’ ou ‘os incapazes’ (termos que mais tarde foram substituídos por ‘os deficientes’) e as pessoas sem deficiência como ‘os normais’, ‘os capazes’, ‘os capacitados’.

A partir de 1976, quando a Assembleia Geral da ONU designou o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, o mundo passou a acrescentar a palavra ‘pessoas’ antes de ‘deficientes’ (portanto, ‘as pessoas deficientes’) ou antes de ‘normais’ (portanto, ‘as pessoas normais’, depois substituída por ‘pessoas não deficientes’ ou ‘pessoas sem deficiência’).

Os conceitos ‘ableism’, ‘handicapism’ e ‘disablism’ foram construídos com os seguintes componentes vocabulares: ‘able’ (o capaz), ‘handicapped’ (o incapacitado ou o incapaz) e ‘disabled’ (o deficiente), além do sufixo ‘ism’ (doutrina, sistema, teoria, tendência, corrente etc., com sentido pejorativo).

Em consequência, a tradução destas três palavras para a língua portuguesa deveria seguir as terminologias da época, resultando em: ‘capacitismo’ = ‘ableism’; ‘incapacitismo’ = ‘handicapism’; ‘deficientismo’ = ‘disablism’. Hoje, na era do termo ‘pessoas com deficiência’, fica complicado traduzir aquelas palavras tão antigas e tão cheia de percepções equivocadas.  

Os conceitos ‘capacitismo’, ‘incapacitismo’ e ‘deficientismo’ tinham e têm basicamente o mesmo significado, ou seja, ‘discriminação ou um conjunto de crenças pejorativas contra pessoas com deficiência’. Mas, a diferença entre estas três palavras está no foco apontado por quem pratica a tal discriminação, a saber:

  1. O capacitismo está focalizado nas supostas ‘capacidades das pessoas sem deficiência’ como referência para mostrar as supostas ‘limitações das pessoas com deficiência’. No capacitismo, a ênfase é colocada nas supostas ‘pessoas capazes’, as quais constituem a maioria da população e são supostamente consideradas ‘normais’.
  2. Inversamente, o incapacitismo ou deficientismo está focalizado nas supostas ‘limitações das pessoas com deficiência’ como referência para mostrar as supostas ‘capacidades das pessoas SEM deficiência’. No incapacitismo ou deficientismo, a ênfase é colocada na suposta ‘anormalidade’ das pessoas COM deficiência, as quais constituem uma minoria populacional.

Do capacitismo e do incapacitismo ou deficientismo decorrem atitudes expressas sob três formas: modelo médico da deficiência, paradigma da integração e termos considerados politicamente corretos.

Estas três formas aparecem explicitamente em leis, políticas públicas, mídias, literaturas e também em serviços e programas.

Seguem-se as explicações sobre o modelo médico da deficiência (em contraposição ao modelo social da deficiência), o paradigma da integração (contrapondo-se ao paradigma da inclusão) e a terminologia politicamente correta (em contraposição à terminologia tecnicamente apropriada).

Modelos da Deficiência

  1. Modelo médico. Aqui, a deficiência é tida como o principal fator responsável pela não participação (não aceitação) de pessoas com deficiência nos sistemas comuns da sociedade. A deficiência é considerada um fator negativo, errado, indesejável, que precisaria ser eliminado ou, pelo menos, reduzido como condição sine qua non para que a pessoa com deficiência possa fazer parte da sociedade. Para tanto, a sociedade usa o critério da triagem diagnóstica, que separa pessoas com deficiência em elegíveis e não elegíveis à participação nos sistemas comuns (educação, trabalho etc.). O modelo médico da deficiência gerou o paradigma da integração e a terminologia politicamente correta.
  2. Modelo social. O principal fator responsável pela não participação (não aceitação) de pessoas com deficiência na sociedade é constituído por barreiras atitudinais, arquitetônicas, comunicacionais, metodológicas, instrumentais, programáticas e naturais, existentes na sociedade. A deficiência é apenas um dos atributos da diversidade humana. Ela não é necessariamente negativa, errada ou indesejável. Este modelo gerou o paradigma da inclusão e a terminologia tecnicamente apropriada, os quais vieram a ser incorporados na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pela ONU em 2006.

Paradigmas da Sociedade

  1. Integração. A sociedade aceita receber apenas as pessoas com deficiência comprovadamente capazes de participar em igualdade de condições com as demais pessoas (isto é, a maioria da população), superando ou contornando as barreiras nela existentes. Portanto, o processo deste paradigma é seletivo, separando as pessoas com deficiência em: super-heróis e coitadinhos. As pessoas com deficiência passam pelo crivo da triagem diagnóstica, que determina quais estão preparadas para entrar nos sistemas comuns e quais deverão permanecer em sistemas separados. Este paradigma seguiu o modelo médico da deficiência e frequentemente segue a terminologia politicamente correta.
  2. Inclusão. Todas as barreiras da sociedade são eliminadas ou, pelo menos, reduzidas, para que todas as pessoas com ou sem deficiência possam participar plenamente em todos os sistemas sociais comuns. Portanto, o processo deste paradigma não é seletivo e não utiliza critérios de seleção ou elegibilidade. Ele é acolhedor e includente, não impondo pré-condições para o acesso à sociedade e a permanência nela. Este paradigma segue o modelo social da deficiência e frequentemente segue a terminologia tecnicamente apropriada.

Terminologias

  1. Politicamente correta. Consideram-se politicamente corretas as palavras e expressões construídas principalmente com base no eufemismo. Exemplos: pessoas com capacidades diferenciadas, pessoas dEficientes, pessoas portadoras de diversidade funcional, pessoas especiais, alunos com necessidades especiais. No bojo destes e outros termos, encontram-se as visões capacitista e incapacitista ou deficientista. Outros exemplos: escola especial, classe especial, oficinas protegidas de trabalho, clubes especiais, Esta terminologia segue o modelo médico da deficiência e o paradigma da integração.
  2. Tecnicamente apropriada. Consideram-se tecnicamente apropriadas as palavras e expressões construídas com base no protagonismo e no empoderamento das pessoas. Exemplos: trabalhadores com deficiência física, crianças com deficiência intelectual, líderes com deficiência auditiva, alunos com deficiência psicossocial. Outros exemplos: independência e autonomia, participação plena e efetiva na sociedade, acesso aos sistemas sociais comuns, tecnologias assistivas, desenvolvimento sustentável, direitos humanos, liberdades fundamentais, diversidade humana, equiparação de oportunidades, equiparação de condições, formatos acessíveis de informação e comunicação, expressão de vontade e opinião, inclusão plena, mercado aberto de trabalho, políticas e medidas apropriadas. A terminologia apropriada segue o modelo social da deficiência e o paradigma da inclusão.

Conclusão

Estamos no século 21, em plena era da inclusão. Seria de se esperar que os conceitos ‘capacitismo’ e ‘incapacitismo’ ou ‘deficientismo’ já tivessem sido banidos do nosso vocabulário e das nossas práticas sociais (leis, políticas públicas, serviços, programas etc.).

Mas, não. Eles continuam orientando e inspirando diversos atores sociais a aprovarem práticas sociais que, mesmo alegando cumprir a Convenção da ONU, procuram atender pessoas com deficiência em recintos separados, exclusivos, especializados — esquivando-se do maior desafio defendido por inclusivistas com e sem deficiência: a adequação dos sistemas sociais comuns, transformando-os de tal maneira que todas as pessoas, quaisquer que sejam suas características, necessidades e habilidades, possam exercer ativamente a sua cidadania junto às demais pessoas na sociedade geral.

Este é o desafio a ser enfrentado com urgência por todas as sociedades que desejam ser inclusivas.


Como citar este artigo:

SASSAKI, Romeu Kazumi. Capacitismo, incapacitismo e deficientismo na contramão da inclusão. Revista Reação, ano XVII, n. 96, jan./fev. 2014, p.10-12. Atualizado em 1°/maio/2020.    

Romeu Kazumi Sassaki é consultor, autor de livros de inclusão social e presidente da Associação Nacional do Emprego Apoiado (Anea) nas gestões 2014-2016 e 2016-2018.


Comments

4 respostas para “Capacitismo, incapacitismo e deficientismo na contramão da inclusão”

  1. Avatar de Lucas Reis Pereira
    Lucas Reis Pereira

    Excelente artigo.

    Mas gostaria de saber a fonte utilizada por você para delinear estes conceitos, especificamente sobre as terminologias ditas como ‘tecnicamente adequadas’.
    Eu, enquanto pessoa com visão subnormal, rechaço a utilização do termo “deficiência” por sê-lo essencialmente negativo. A condição específica, eu creio, serviria tão somente para fins de Direito, embora eu ainda precise desenvolver melhor este pensamento.
    Não vislumbro problemas em utilizar o termo ‘diversidade funcional’, mas concordo que é desnecessário o uso excessivo de expressões melindrosas, que são as consideradas politicamente corretas.
    De qualquer forma, gostaria de obras que embasem este artigo, você possui algo para me indicar?

    1. Oi, Lucas:
      Acrdito que lhe respondi diretamente ao seu email em agosto de 2020.
      Se não recebeu, me avise.
      Abraço
      Romeu

  2. Avatar de Tânia Brandão
    Tânia Brandão

    Caro Romeu; boa noite!
    Parabéns pelo artigo! Confesso que parei para refletir!
    Sou a favor da exclusão zero. Estamos caminhando para que as futuras gerações possam conviver de forma harmoniosa, respeitando todas as diferenças. Penso que o capacitismo pode interferir nas conquistas das Pessoas com Deficiência e tirar o foco da Inclusão. Vamos lembrar que as Pessoas com Deficiência Intelectual, vão precisar de apoio em todo seu processo vital para sua participação “plena” na sociedade . Como vamos nos referir a população que necessita de acessibilidade em várias dimensões?
    Grata,

    1. Olá Tania:
      Gostei da sua observação sobre o futuro quanto à posição equivocada da sociedade para com as PcD.
      O que você quis dizer com “referir à população etc”. Seria “como vamos chamar essa população”?
      Aguardo.
      Romeu

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